sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Filosofia Afroperspectivista: A Ancestralidade Viva.

Título do Projeto: Filosofia Afroperspectivista: A Ancestralidade Viva.

1.                  Resumo
O propósito deste projeto é estudar e situar de forma mais abrangente a filosofia afroperspectivista, isto é, temas de filosofia africana e afrodiaspórica articulados em uma noção filosófica de ancestralidade, seja analisando e retomando questões de pensadores africanos atuais e do passado, seja, investigando profundamente os problemas e as relações étnico-raciais contemporâneas da população afrodescendente pelo planeta, como no caso da população negra do Brasil. Trata-se de um tema bastante recente na história da filosofia ocidental, fruto de uma profunda crítica pós-colonial e epistemológica da disciplina, e que pode e deve contribuir para a formação de sociedades mais igualitárias e livres de todas as formas de racismo, além de ampliar os horizontes reflexivos e produzir uma leitura mais verdadeira e legítima da forma como se lida com a história mundial.

Palavras-chave: Filosofia Africana, Filosofia Afrodiaspórica, Racismo, Relações Étnico-Raciais, Pós-Colonialismo, Epistemologia.

2.                  Introdução e Justificativa
De um ponto de vista abrangente a filosofia pode desenvolver maneiras de articular a reflexão e estruturar o pensamento com questões transversais recorrentes do cotidiano, isso significa que a atividade filosófica através de um exercício crítico e reflexivo pode criar um discurso que torne visível em sua potencialidade, por exemplo, às origens culturais, o senso de pertencimento a uma classe social, as distinções de gênero, de sexualidade, de etnia e de geração dos seres humanos, ou seja, muito dos aspectos que atravessam a própria realidade e que podem ser refletidos pela razão. Contudo e mais especificamente, a tradição filosófica foi em certa medida um campo que fez e faz poucos debates a respeito das relações étnico-raciais, do racismo anti-negro, sobre os desdobramentos das relações entre colonização, política e a invisibilidade concernente aos saberes africanos, essas práticas de apagamento são definidas por especialistas no tema como manifestações do racismo epistêmico, em que o ponto de vista europeu se prevalece e se impõe como perspectiva única e central na produção do conhecimento.
No fim, o que é próprio da filosofia e pode contribuir, por exemplo, para horizontes antirracistas na sociedade brasileira? O que a filosofia tem a dizer sobre o racismo? Existem pontos de contato entre a filosofia e a história da África? Responder essas questões significa entrar em um debate atual e necessário para o desenvolvimento de um conhecimento plural, a formação filosófica é um processo contínuo, nunca se termina de aprender e nem de se ensinar, e para que alguém possa ser sujeito ativo e atuante dessa aprendizagem, é preciso que a filosofia assuma o seu papel como instrumento de desconstrução e desmistificação desses problemas, com isso dando a possibilidades de se construir novos mundos no presente. 
Esta discussão inicial alinha-se ao contexto político brasileiro em que se vigora a lei número 10.639/03 que torna obrigatória em todas as modalidades de ensino e níveis de educação os estudos de História e Culturas, Africanas e Indígenas.
E se propõe a apontar como a investigação filosófica se insere nesse arranjo, como dito anteriormente na medida em que ela problematiza o mundo ao redor desperta um olhar filosófico e uma atitude crítica que é capaz de estremecer as concepções do senso comum. Nesse sentido como destaca magistralmente o filósofo brasileiro Eduardo David de Oliveira, a Filosofia da Ancestralidade, ideia central em seus estudos, aparece na encruzilhada do pensamento contemporâneo. Ela se coloca no meio dos estudos pós-coloniais e dialoga intensamente com o pensamento negro-africano, afrodiaspórico e no nesse caso com o pensamento social negro brasileiro e latino-americano.

2.1.            Filosofia e História da África
Infelizmente o continente africano carregado de diversidade cultural e os mais variados modos de vida foi definido pela antiguidade greco-romana como um espaço desprovido de ‘civilidade’, essa lógica vai influenciar futuramente os próximos filósofos e vai implicar na ideia de que a filosofia desenvolvida em qualquer outra região que não fosse a europeia seja “automaticamente” deslegitimada. Reforçando a prática histórica do eurocentrismo colonial que perpetua a ideia de que existem povos menos desenvolvidos e epistemologicamente imaturos, ao passo que o povo europeu seria o mais superior na escala de desenvolvimento. Como é feito por Kant em uma declaração no século XVIII:
“Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo, o senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão.” (KANT, ‘Observações sobre o sentimento do belo e do sublime’, apud NOGUERA, 2011)
Essa falsa ideia de hegemonia construída a base da violência e da destruição dos conhecimentos locais, no nosso caso da colonização do continente africano, passou a desqualificar e invisibilizar os saberes tradicionais, proporcionando uma completa desconsideração do pensamento filosófico e estruturado de diversos povos, esse fenômeno é chamado de racismo epistêmico¹, e pode ser entendido como a desqualificação de qualquer pensamento que não seja o ocidental, e no caso da filosofia, o racismo epistêmico sustenta que apenas o pensamento ocidental pode garantir um olhar e qualificar o status filosófico e de veracidade de qualquer outro saber mesmo os menos abstratos. Com isso, essa desqualificação culmina na zoormofização sistemática desses povos fundamentando, por exemplo, noções que embasaram a escravização da população negra e que até hoje inspiram ofensas raciais baseadas em injúrias que comparam pessoas negras a outros animais. Recusando assim de forma completamente equivocada a existência de elementos presentes em todos os seres humanos em suas mais diversas sociedades e civilizações: a capacidade de pensar e refletir criticamente sobre a realidade. Nesse sentido, como a filosofia se desvincula do racismo epistêmico? E como ela pode ser capaz de suscitar questões relacionadas às relações étnicos raciais? É, justamente, problematizando a si mesma que a filosofia encontra o caminho de articulação, encarando esse desafio de frente ela vai ser capaz de romper essas limitações e reescrever a história da filosofia agora em uma lógica afroperspectivista.
Logo, uma primeira questão que surge é problematizar a própria origem da filosofia sendo considera exclusivamente grega para muitos autores da tradição, uma vez que essa constatação é invariavelmente problemática por ser marcada pelo racismo epistêmico.

1-       Ver NOGUERA, Renato. O ensino de filosofia e a lei 10.639. Rio de Janeiro: CEAP, 2011 pg. 19.

2.2.             Filosofia Afroperspectivista e a Ancestralidade.
Dentro da própria história da filosofia exclusivamente grego-romana essa origem já se coloca como um assunto polêmico, onde teoricamente ela é apresentada por muitos autores com uma transição ‘forçada’ de um momento histórico mitológico para um momento histórico mais racional do pensamento grego, a linha que divide esses períodos na verdade é bem mais complexa e nebulosa. E com essa ambiguidade aparecem ainda mais novos problemas colocados pelos pensadores atuais que contestam o apagamento da influência direta do pensamento egípcio e árabe, que em meio a um período cultural da antiguidade era marcada por relações de trocas de todos os tipos e pelos mais variados atores, filósofos como Pitágoras afirmam em seus próprios escritos ter estudado no Egito e atribui grande parte de suas concepções filosóficas a esse período de estudos na África. (CARREIRA, 1994)
Se a filosofia não “nasceu” na Grécia, onde então ela teria a sua origem? Com a constatação do potencial e faculdades humanas essa ideia de origem ou superioridade de pensamento fica abalada e praticamente insustentável. A partir deste questionamento e observado de um ponto de vista mais histórico alguns estudos apontam que os primeiros registros escritos da filosofia, enquanto pensamento analítico e estruturado surgem na África, e mais precisamente no Egito Antigo, que se destaca como uma das civilizações mais sofisticadas e amplamente desenvolvidas da história do mundo. A partir das pesquisas realizadas por Cheikh Anta Diop conseguiram-se provas de que a população do antigo Egito era negra. O pesquisador conseguiu isolar e medir a concentração de melanina, através da exumação de múmias e constatou-se que se tratava de membros negros da civilização egípcia (NOGUERA 2011). Então, por que nos dias de hoje, por exemplo, a civilização do Egito antigo ainda é retratada majoritariamente como branca em diversas obras da mídia?
 É a partir de práticas de apropriação cultural que nega o intercâmbio comum dos saberes entre os povos e que apaga a história real dessas trocas, é que se faz necessária a recuperação da ancestralidade negra, pois só assim as pessoas negras poderão se reconhecer como parte fundamental na constituição de um pensamento filosófico e da própria história mundial. E as demais etnias e povos vão poder ter uma noção mais adequada e realista da produção histórica dos conhecimentos.
Nesse sentindo, conforme apontado pelo filósofo brasileiro Renato Noguera um dos livros mais antigos da civilização egípcia é o Maat, escrito entre 1580A. C. à 1200A. C. A obra reúne mitos e postulados filosóficos africanos resultado da reflexão de vários autores. Erroneamente traduzido como Livro dos Mortos, o Maat é mais precisamente o Livro da Verdade, e representa um grande trabalho a respeito de muitos temas feitos pelos filósofos egípcios. Filósofos como Ptah-Hotep (2414 a.c), Amenemope (1290 a.c), Imhotep (2700 a.c), entre outros, deixaram papiros com os seus escritos e postulados filosóficos com reflexões sobre a ética, o amor, a existência, a vida após a morte, ou seja, diversas questões relativas à condição humana inerente de cada civilização. Nesses escritos o termo mais próximo de “filosofia” aparece em hieróglifos através da denominação “rekhet” muito antes de Tales de Mileto e Sócrates falarem de Φιλοσοφία(Filosofia) propriamente.
Para conceituar de forma mais nítida o legado de manifestações como essas do pensamento egípcio e seu legado para o presente e o futuro, como também conceituar as contribuições da cultura material e riqueza simbólica de outros momentos e lugares, os afrodescendentes têm a necessidade de reintroduzir a África ‘perdida’ no solo brasileiro e no mundo, seja através de uma recriação mais ou menos ideal, logo que nunca vai ser possível recriar o passado absolutamente no presente sem cair em uma caricatura.
  Mas sim recriar epistêmica, política, artística e até mesmo econômica a inclusão ancorada na experiência negro-africana no Brasil, que se manifesta através da sua forma cultural seja na capoeira de angola, no Candomblé, ou em exemplos de lógicas de sobrevivência anticapitalistas nas economias solidárias das favelas, etc. Para tanto é necessário se valer de pensamentos como os de Eduardo David de Oliveira, e sua afroperspectiva Filosofia da Ancestralidade que ele define como:
“O regime singular que os africanos souberam produzir tanto na Diáspora quanto na África. Regime abrangente capaz de englobar todas as experiências de africanos e afrodescendentes e, ao mesmo tempo, singularizar cada experiência com seu sentido específico, forjado no calor do acontecimento. Aqui, Ancestralidade é, então, mais que um conceito ou categoria do pensamento. Ela se traduz numa experiência de forma cultural que, por ser experiência, é já uma ética, uma vez que confere sentido às atitudes que se desdobram de seu útero cósmico até tornarem-se criaturas nascidas no ventre-terra deste continente metafórico que produziu sua experiência histórica, e desse continente histórico que produziu suas metonímias em territórios de além-mar, sem duplicar, mas mantendo uma relação trans-histórica e trans-simbólica com os territórios para onde a sorte espalhou seus filhos.” (OLIVEIRA, 2012)
Logo a Ancestralidade torna-se um conceito e categoria extremamente potente capaz de dialogar com a experiência africana em solo brasileiro e no solo do resto do mundo. Se traduzindo em um território compartilhado no simbólico e no físico, ou seja, que se faz no corpo de si e no corpo dos outros através de uma série de trocas intersubjetivas do legado do passado no tempo presente. Afirmar uma filosofia afroperspectivista possibilita a valorização do pensamento de outros povos que não seja apenas o discurso único do povo europeu no mundo atual, assim como também faz o discurso da filosofia da libertação latino-americana, essa filosofia é uma forma de escapar da etnocentralidade e passar a limpo a história da humanidade, tendo um resultado de impacto grandioso.
Baseada em um fundamento ontológico e epistemológico a Filosofia da Ancestralidade, é capaz de dar um programa fecundo para a educação das relações étnico-raciais no Brasil e no resto do mundo. Cultivando um legado com rico manancial epistêmico para o empoderamento e emancipação do pensamento de jovens negras e negros no ensino médio que se veem marginalizados e oprimidos, por exemplo, pelo próprio discurso filosófico europeu, que também por outro lado nesse embate polifônico da tradição pode ser potencializado e enriquecido pela contribuição do pensamento de todos os povos, independente da sua localização no planeta.

3.                  Metodologia
Este projeto esboça um estudo interdisciplinar entre Filosofia, História e outras áreas das humanidades. De um modo mais abrangente, podemos enquadrá-lo dentro do escopo e do foco da Filosofia, uma vez que a maioria das referências partem desta área. De acordo com H. S. Gentil (2005, p. 173), no campo da Filosofia “de modo geral aceita-se que a metodologia de pesquisa define-se basicamente pela leitura e a reflexão, incluindo o levantamento bibliográfico e a seleção da bibliografia pertinente como atividades indispensáveis”. De acordo com isso, serão realizadas análises e discussões dos conteúdos mencionados na bibliografia inicial selecionada (e, caso haja necessidade, de outros títulos), através da leitura e reflexão, incluindo registros do material estudado que formarão os relatórios a serem entregues no decorrer da pesquisa. 
4.                  Objetivos e Metas
Espera-se, depois dessa discussão inicial ampliar e potencializar os resultados do exercício da reflexão e interpretação da bibliografia acerca da compreensão da filosofia afroperspectivista e seus conceitos relacionados, a fim de também produzir um material adequado e introdutório do tema com a Ética de Amen-em-ope, para assim ser apresentado e servir de suporte nas aulas de Filosofia, História e demais disciplinas das humanidades no ensino médio, regida e incentivada pela lei 10.639/03.
5.                  Cronograma

6.                  Referências Bibliográficas:
CARREIRA, José. “Filosofia antes dos Gregos”.  Mem Martins: Publicações Europa-América, 1994.

GENTIL, H.S. “Convite à pesquisa em Filosofia e Ciências Humanas - Orientações básicas para elaboração de um projeto”. Integração - Ano XI, Nº 41, pgs 169-174, Junho/2005.

NOGUERA, Renato. “O ensino de filosofia e a lei 10.639”. Rio de Janeiro: CEAP, 2011.

NOGUERA, Renato. "A ética da serenidade: O caminho da barca e a medida da balança na filosofia de Amen-em-ope" Ensaios Filosóficos, Volume VIII – Dezembro/2013.

NOGUERA, Renato. “O conceito de drible e o drible do conceito: analogias entre a história do negro no futebol brasileiro e do epistemicídio na filosofia” Revista Z Cultural. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/o-conceito-de-drible-e-o-drible-do-conceito-analogias-entre-a-historia-do-negro-no-futebol-brasileiro-e-do-epistemicidio-na-filosofia/ (acesso em Julho de 2016).

OLIVEIRA, Eduardo David de. “Filosofia da ancestralidade como filosofia africana: Educação e cultura afro-brasileira”. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 18: maio-outubro/2012, p. 28-47.

RAMOSE, Mogobe. “Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana”. Tradução Dirce Eleonora Nigro Solis, Rafael Medina Lopes e Roberta Ribeiro Cassiano. In: Ensaios Filosóficos, Volume IV, Outubro/2011.

SANTOS, Luis Carlos. “Ancestralidade e liberdade: Em torno de uma filosofia africana no Brasil”. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 18: maio-outubro/2012, p. 48-61.