segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Um único céu sob múltiplos olhares: O encontro das astronomias Tupi-Guarani e Ocidental.

O ato de observar e pensar os corpos celestes, sem dúvida, é um dos traços mais compartilhados e fundamentais para a sobrevivência das mais variadas sociedades humanas, quando contrastamos através de comparações os conhecimentos astronômicos, muito das nossas particularidades e semelhanças com os “outros” são reveladas. As narrativas com suas explicações, os desenhos construídos com as estrelas fixas no contínuo movimento do céu e instrumentos como calendários, apontam o relacionamento profundo e inescapável da influência dos corpos celestes em nossos corpos na terra firme. O caráter particular dessas observações, a transmissão ancestral desses conhecimentos e costumes se confunde com a própria diversidade cultural, diversidade de valores e interpretações dos seres humanos.
Mesmo os conhecimentos dos corpos celestes do pensamento ocidental que se propõe presunçosamente universais, ou de vanguarda na “história da humanidade” têm muitas características pontualmente costumeiras edificadas em narrativas de uma perspectiva muito singular de quem está em um lugar especifico do globo, principalmente por conta da localização nos hemisférios, e muitas vezes dadas por explicações erradas como notado pelos próprios pensadores ocidentais posteriormente. Pela perspectiva de análise da etimologia e genealogia, desse fluxo histórico de narrações no pensamento ocidental só restaram os nomes e os desenhos das constelações no céu, por exemplo, oriundos dos conhecimentos presentes em mitos milenares que ‘desencantaram’, mas que conservaram a beleza criativa do olhar e interpretação dos povos ancestrais.
Embora essas questões na sociedade brasileira devessem ser mais valorizadas para uma formação educacional básica e justa, por conta de sua constituição cultural fundada na origem de diversos grupos indígenas nativos e grupos afro-diaspóricos, existem escassos trabalhos sobre o tema e o decorrente desaparecimento da diversidade de conhecimentos desses em nome dos da colonização europeia, refletindo a perda de um patrimônio cultural e científico irreparável, que poderiam ser muito útil para nós do hemisfério sul. Especialistas em filosofia africana e afro-diaspórica chamam esse fenômeno de epistemicídio onde no processo colonizador ocorre um grande embranquecimento cultural por conta do abandono, destruição ou assimilação direcionada dos conhecimentos de povos de outras matizes étnicas.
Neste texto que faz uma leitura das construções e saberes dos Tupis-Guaranis serão apresentados alguns aspectos de sua especificidade e poder explicativo, isso a partir dos estudos etno-astronômicos feitos em pesquisas realizadas por Germano Afonso, indígena guarani, brasileiro e Doutor em Astronomia. Esse autor contemporâneo aponta que as sociedades indígenas há muito tempo notaram que as atividades de caça, pesca, coleta e lavoura são relacionadas com os mecanismos que regem os processos cósmicos, sendo utilizados através da observação e da interpretação dos mitos e os conhecimentos contidos nele em favor da sobrevivência das sociedades em questão. É factual que no grande grupo dos Tupis-Guaranis nem todas as sociedades indígenas vão atribuir o mesmo significado para determinado fenômeno astronômico, por conta de cada um ter sua estratégia de sobrevivência e especificidade. Para isso é preciso saber a localização física e geográfica de cada grupo, como os que habitam o litoral e o interior, ou outras diferentes latitudes.
Como aponta Germano, por exemplo, junto à linha do Equador não há muito sentido em referir-se às estações do ano em função de variação da temperatura local. Essa característica é quase irrelevante para o território sul-americano nem sempre essas diferenças podem ser caracterizadas como verão ou inverno. Por estarmos em uma região tropical o clima é definido, fundamentalmente, em função da maior ou menor abundância de chuvas. Os Guaranis dividem esses dois períodos em tempo novo (ara pyau) correspondente a primavera e verão e o tempo velho (ara ymã) correspondente ao outono e inverno ocidentais. Para prever e gerir a vida os Guarani vão usar como instrumento em seu calendário a trajetória anual do Sol, medida pela posição do seu nascer com rochas e hastes verticais, o Sol para eles possuem um grande significado religioso. Todo o cotidiano dos Guarani e dos Tupi em linhas gerais está voltado para a busca da força espiritual do Sol.
Afonso indica uma questão interessantíssima fruto de seus conhecimentos tanto na astronomia indígena quanto na astronomia ocidental, a partir do registro de 1612 a “Histoire de la mission de pères capucins en l’Isle de Maragnan et terres circonvoisines” do missionário capuchinho francês Claude d’Abbeville, considerado uma das mais importantes fontes da etnografia dos indígenas do tronco tupi, Afonso infere que segundo o missionário

"’os tupinambás atribuem à Lua o fluxo e o refluxo do mar e distinguem as duas marés cheias que se verificam na lua cheia e na lua nova ou poucos dias depois’. Assim, mesmo antes dos europeus, os tupinambás já sabiam que perto dos dias de lua nova e de lua cheia as marés altas são mais altas e as marés baixas são mais reduzidas do que nos outros dias do mês.”


O autor conclui que enquanto Galileu Galilei na mesma época de d’Abbeville afirmava que a explicação desse fenômeno seria a interação dos movimentos circulares da rotação da Terra e da translação em torno do Sol, desconsiderando erroneamente a ação gravitacional da Lua, os tupinambás á anos já tinham o conhecimento correto da periodicidade das marés e sua relação com as fases da Lua, explicação que só vai ser descoberta no mundo ocidental por Newton muito anos à frente. A explicação dada por ele se fundamenta no fato de que esse fenômeno pode ser mais bem observado entre os trópicos, região em que se localiza a maior parte do Brasil diferentemente dos países da Europa.
Por fim um dos aspectos mais importantes sobre a Astronomia Tupi-Guarani gira em torno das constelações, a União Astronômica Internacional (UAI) utiliza um total de 88 constelações, distribuídas nos dois hemisférios terrestres, enquanto certos grupos indígenas já nos mostraram mais de 100 constelações, vistas de sua região. Elas são instrumentos fundamentais para mapear o céu e fazer uma leitura ordenada dos movimentos dos corpos celestes, Afonso a ponta que elas são figuras imaginárias criadas há mais de 6 mil anos para reunir grupos de estrelas (jaxy tatá), aparentemente próximas, visíveis a olho nu. Uma diferença fundamental entre as constelações indígenas e ocidentais reside no fato que os desenhos das constelações ocidentais são feitos pela união de estrelas. Enquanto, para os indígenas, as constelações são constituídas pela união de estrelas e, também, pelas manchas claras e escuras da Via Láctea, mais fáceis de imaginar, em alguns casos certas constelações são feitas apenas de manchas. A constelação mais conhecida dos indígenas do Hemisfério Sul é a Kuruxu (Cruzeiro do Sul em plena Via Láctea) próxima do polo sul celeste utilizada para determinar os pontos cardeais, as estações do ano e a duração do tempo à noite. As principais constelações indígenas estão localizadas na Via Láctea diferente das Ocidentais que centram no caminho imaginário do sol nas constelações zodiacais. A Via Láctea é conhecida como Caminho da Anta ou como a Morada dos Deuses pela maioria das etnias dos tupis-guaranis.
É importante ressaltar como o indígena está em absoluta confluência e integração com o universo através de seus mitos, ainda sobre as constelações elas refletem a rica biodiversidade da natureza do nosso território, Afonso diz que:

Quando indagados sobre quantas constelações existem, os pajés dizem que tudo que existe no céu existe também na Terra, que nada mais seria do que uma cópia imperfeita do céu. Assim, cada animal terrestre tem seu correspondente celeste, em forma de constelação.


Em termos gerais é nítido como o céu compartilhado e tudo que decorre dele, se configura como um principio estruturador da vida terrena, é claro que dentro das próprias sociedade indígenas é possível traçar muitas semelhanças nesses aspectos por conta da localidade geográfica, mas cada uma vai ter sua dinâmica e mitos próprios.

REFERÊNCIAS

AFONSO, Germano. “Mitos e Estações no céu Tupi- Guarani”. Scientific American Brasil.

Entrevista gravada: A Ciência que eu Faço - Germano Bruno Afonso. https://www.youtube.com/watch?v=MQFwZJMS064

Alexandre Toccoli Filho, Matheus Carvalho de Oliveira, Rafael Bicudo Ribeiro, Rodrigo Silva Malaquias dos Santos. “Cosmologia indígena brasileira: Tupinambás e Guaranis”. http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/246176/mod_resource/content/1/Cosmologia%20ind%C3%ADgena%20brasileira%20-%20Tupinamb%C3%A1s%20e%20Guaranis.pdf (acesso setembro 2015)

“A Astronomia e a Astrologia no Brasil Indígena” http://espacoastrologico.org/a-astronomia-e-a-astrologia-no-brasil-indigena/ (acesso setembro 2015, coletânea de artigos publicados nesse blog)


NOGUERA, Renato. “O conceito de drible e o drible do conceito: analogias entre a história do negro no futebol brasileiro e do epistemicídio na filosofia” Revista Z Cultural. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/o-conceito-de-drible-e-o-drible-do-conceito-analogias-entre-a-historia-do-negro-no-futebol-brasileiro-e-do-epistemicidio-na-filosofia/ (acesso setembro 2015)

ANEXOS: Observação Comparada de Constelações e Dádiva.

1.            Constelação da Ema – Texto de Germano Afonso.


Os Guarani do Paraná nos mostraram a localização exata da constelação da Ema (Guyra Nhandu) que fica na região do céu ocupada pelas constelações ocidentais do Cruzeiro do Sul, da Mosca, do Centauro, do Escorpião, do Triângulo Austral e de Altar.  A cabeça da Ema é formada pelo Saco de Carvão, sendo que a parte superior fica perto da estrela Mimosa e o bico perto de Magalhães, ambas da constelação do Cruzeiro do Sul. Perto do seu bico parece existirem dois ovos de pássaro (Guirá-rupiá, em Guarani) que ela tenta devorar. Esses ovos são as estrelas Alfa e Beta da constelação da Mosca. As estrelas Alfa e Beta da constelação do Centauro estão dentro do pescoço da Ema, que também é formado por uma mancha escura da Via Láctea. A cauda da Ema é formada por Antares, Al niyatn e outras estrelas da constelação do Escorpião. Um dos pés da Ema é formado pela cauda do Escorpião. A parte de baixo do corpo da Ema começa a ser formado pela estrela Beta da constelação do Triângulo Austral (Triangulum Australe) e por estrelas da constelação da Altar(Ara),sendo que a parte de cima de seu corpo é formado principalmente por estrelas pertencentes às constelações de Escorpião e do Lobo(Lupus). A constelação da Ema aparece em relatos de várias etnias brasileiras: carajás, tembés e os teneteharas
A constelação da Ema aparece, inclusive, em culturas de outros continentes, como, por exemplo, entre os boorongs, povo aborígene que vive em Victoria, Austrália: “O ano boorongs começa no outono, quando Tchingal, a ema gigante, aparece no céu à noite. Esta é a época em que as emas começam a pôr seus ovos e que seus filhotes saem dos ovos”.

2.             Dádiva – Desenho e Aquarela da constelação de Escorpião e Lua Quarto-Crescente. Texto e desenho feitos por mim.

Observação Astronômica no sábado em 19 de setembro de 2015, entre 20h15 e 21h20 na Avenida São Paulo, Jardim dos Reis - Franco da Rocha - SP. Coordenadas do lugar de visão do céu: 23°18'32.7"Sul 46°43'58.7"Oeste.
Não tenho muitos conhecimentos técnicos em astronomia, mas desde criança identificava essa constelação no céu, fora essa, só conheço a do Cruzeiro do Sul, e por conta dos textos desse trabalho passei a identificar as Plêiades (Eixu, em guarani). Antes achava que o desenho dessa constelação fosse invenção da minha imaginação, ainda pode ser, não é tão impossível uma criança criar desenhos de constelações observando o céu, mas vendo que ela difere em poucas estrelas da constelação oficial de escorpião (ver anexo 3)  acho que eu possa ter aprendido a identificá-la por algum meio e tenha acabado esquecendo a fonte. O interessante é que essa constelação tem presença constante no céu durante o ano inteiro no hemisfério sul, e ela têm muitas estrelas que aparecem na constelação da Ema dos indígenas.


3.            Constelação de Escorpião e Lua Quarto-Crescente pelo aplicativo Google Sky Maps.

Esse aplicativo para celulares faz uma representação do céu com o momento exato observado a partir da sua localização pelo GPS do Celular. Ele também permiti você “viajar no tempo” e ver como estava a posição dos corpos celestes no céu em um momento especifico. Com os dados da minha dádiva você pode ir ver no aplicativo como estava toda a abóboda celeste visível no momento que desenhei.


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